domingo, 28 de agosto de 2011

A menina... (2ªparte)


As aulas foram aperfeiçoando o seu tocar e a menina da bata branca agora passava os seus dias em frente ao piano, vestindo aquele vestido vermelho que tantas e tantas vezes levou aos concertos onde a melodia a fazia esquecer da vida que tinha, da falta que sentia dos seus pais e do amor imenso que tinha por eles.

A menina foi crescendo, perdera o avô que lhe transmitiu valores infindáveis e que por bastantes vezes a animou com os seus jogos de cartas tentando que as saudades dos pais não a fizessem parar de viver. E que saudades eu tinha! Mas esses bichos que crescem e nos consomem o corpo comeram-lhe as entranhas, mataram-no, roubaram-mo! De que adiantou a luta? As idas contínuas ao hospital, o internamento, as sessões de tratamento, a perda de cabelo, a dor, as náuseas, de que adiantou a guerra que travámos se por fim não conseguimos vencer? Que solidão que me invade a alma! Que saudades sinto daqueles nossos momentos!

Agora era a avó, era ela que precisava de cuidados. A memória que até aqui era o que mais se notava a falhar constantemente, tornou-se o menor dos seus problemas porque a lentificação dos movimentos e a sonolência tomou-lhe o lugar. E ali ficava ela, sentada na cadeira de baloiço na entrada da casa, com o olhar fixo, perdido, esquecido… como me atormentava a ideia de ver alguém preso no tempo, alguém que sempre esteve do meu lado quando estava doente, que me aconselhava e que resolvia todos os males que me assolavam. E o sentimento de impotência… Apenas perguntava a mim própria, “Que posso eu fazer mais?”, e as lágrimas começavam a formar-se, os rios a correr pelos jeitos da face, a força a perder-se, a esperança a esgotar-se… Como queria saber salvar-te!

E a menina crescida continuava ali, com o seu vestido vermelho, em frente ao piano que a avó tanto gostava de ouvir, dando-lhe o prazer de sentir a música como se fosse novidade, como se fosse a primeira vez que a ouvia… e para ela, se calhar era…

Continuava mexendo os seus dedos, movimentos frenéticos que faziam baloiçar os seus cabelos, que faziam transparecer a sua paixão pelas pautas musicais…

Mas um dia a avó fugiu, nem a música a fez parar, andou pelo prado deambulando sem parar, foram minutos de busca eterna… Que preocupação que era! E em vez de tocar, começou a vigiar, começou a ficar atenta à janela que dava para a frente da casa, começou a parar e o som mergulhou num profundo silêncio que provocava arrepios na espinha… agora a avó dormia como se não houvesse amanhã, dormia, dormia e voltava a dormir. Por vezes, de repente, acordava agitada, tratava mal tudo e todos, batia, mordia, fugia. As ilusões metiam medo… quantas e quantas vezes entrei nelas para lhe transmitir um pouco de calma? E quantas adormeci ao seu lado, com a minha mão sobre a dela para que ficasse tranquila?

Os problemas de deglutição começaram a surgir e já nem eu a conseguia fazer comer, ela esquecia-se da comida que tinha na boca e nem o meu toque no seu queixo fazia mover a sua boca… a sonda seria a ultima hipótese, mas eu não queria, não queria levá-la para o hospital, não queria fazer com que ela ficasse internada…

Mas nada havia a fazer, o hospital tornou-se a minha casa também, todos os dias, ao lado dela, contando-lhe histórias da sua própria vida agora esquecidos…mas a mim, nunca deixou de me reconhecer, nunca deixou de me tratar pelo meu nome, mesmo quando as suas palavras já eram difíceis de perceber, eu continuava lá, respondia-lhe e passávamos horas à conversa…

Veio um dia e ela não me conheceu, percebi que era o momento da despedida… ela iria morrer! Iria deixar-me para seguir o seu caminho, para fazer uma longa viagem… passei dias a chorar, a acordar todas as noites com pesadelos, a não saber encontrar-me no meio da solidão, do desgosto, da dor de ter de continuar uma vida, agora sozinha… E as saudades que tinha dela, dos dias passados ao seu lado! E a bata branca nunca mais viu a luz do dia, tal como o vestido vermelho que nunca mais sentiu as notas que normalmente o rodeavam, a melodia, o som…e o silêncio penetrante daquela casa fez-me fugir… peguei no telefone, algumas roupas e parti…

Sem comentários: