quinta-feira, 8 de setembro de 2011

A menina... (3ª e última parte)

Andei perdida durante alguns meses, procurando um lugar onde me pudesse encontrar, onde me sentisse bem comigo própria e com a solidão que carregava a minha bagagem. Ia de terra em terra, apanhando sucessivos comboios, viajando até ao final da linha. As insónias eram constantes, gostava de sentir o stress vindo do rodopiar de pessoas que me rodeavam, aquele entra e sai constante, e o tempo a passar, passava horas a olhar para o relógio, vendo o ponteiro dos segundos rodar, ouvindo o tic tac, e as pessoas, essas nem reparavam quando as analisava, estavam tão concentradas nas sua vidas, nos seus problemas. Não viam os meus olhares, não havia bom-dia nem boa-tarde, não havia simpatia, não havia a preocupação nem o espírito de entre ajuda. Um dia vi uma idosa subir os degraus do comboio com muita dificuldade, ninguém se mexeu, ninguém se aproximou oferecendo ajuda, estava todos demasiados ocupados pensando na sua vida medíocre para ajudar…foi nesse momento que me levantei, puxei agarrei no braço da senhora e pousei-o sobre o meu ombro, auxiliei-a e sentei-a junto de mim. Também estava só e tinha um coração tão grande que me apaixonei pelas suas palavras. Pertencia a uma família de pescadores, morava junto ao mar num pequeno bairro, agora quase deserto, e quando me convidou a ficar com ela, não olhei para trás. Sentia-me bem ali, e sentia falta do afecto dos meus avós, afecto que tinha encontrado de novo ao lado desta maravilhosa mulher, cheia de força, de amor.

Acolheu-me…ficava sentada na cadeira de baloiço no alpendre da velha casa de madeira, ficava a ver as ondas, as estrelas e o luar, o luar que nas cidades era impossível de visualizar daquela maneira…sentia-me tão bem!

Aquela paz interior fez encontrar-me, fez-me seguir em frente, comecei a escolher aquele local para colocar as minhas leituras em ordem e acabei comprando aquelas casas abandonadas, iniciei a sua restauração e mantive-me ocupada durante vários anos. A divulgação fez com que o turismo voltasse aquela região e as casas ano após ano eram alugadas, devolvi a vida aquele lugar tão belo.

Era final do verão, a praia agora era deserta e do alpendre deu-me uma vontade de me lavar de pensamentos negativos, de limpar a minha alma de angústias e de abrir o meu coração. Corri para o mar, e num mergulho que parecia não ter fim, removi todas as preocupações que me assolavam e fiquei ali sentada à beira mar comtemplando toda a paisagem envolvente. Vi um vulto aproximar-se, alto, forte, amoroso e afectuoso que me envolveu nos seus braços, um abraço sem fim… senti-me segura, confiante e tão completa.

Limpa de toda a maldade aceitei-o na minha vida, e ele permaneceu ao meu lado todo o tempo, apoiou-me nos meus projectos, e trouxe a bata branca e o vestido vermelho que há tantos anos tinha guardado. Quando cheguei a casa, estava lá uma mulher, linda, com aquele rosto de menina…na minha sala tinha o piano branco e o cavalete e a tela estavam no alpendre para recomeçar a vida que tinha deixado.

Agora sim sou feliz...os meus pais tinham voltado, e voltaram para ficar…

domingo, 28 de agosto de 2011

A menina... (2ªparte)


As aulas foram aperfeiçoando o seu tocar e a menina da bata branca agora passava os seus dias em frente ao piano, vestindo aquele vestido vermelho que tantas e tantas vezes levou aos concertos onde a melodia a fazia esquecer da vida que tinha, da falta que sentia dos seus pais e do amor imenso que tinha por eles.

A menina foi crescendo, perdera o avô que lhe transmitiu valores infindáveis e que por bastantes vezes a animou com os seus jogos de cartas tentando que as saudades dos pais não a fizessem parar de viver. E que saudades eu tinha! Mas esses bichos que crescem e nos consomem o corpo comeram-lhe as entranhas, mataram-no, roubaram-mo! De que adiantou a luta? As idas contínuas ao hospital, o internamento, as sessões de tratamento, a perda de cabelo, a dor, as náuseas, de que adiantou a guerra que travámos se por fim não conseguimos vencer? Que solidão que me invade a alma! Que saudades sinto daqueles nossos momentos!

Agora era a avó, era ela que precisava de cuidados. A memória que até aqui era o que mais se notava a falhar constantemente, tornou-se o menor dos seus problemas porque a lentificação dos movimentos e a sonolência tomou-lhe o lugar. E ali ficava ela, sentada na cadeira de baloiço na entrada da casa, com o olhar fixo, perdido, esquecido… como me atormentava a ideia de ver alguém preso no tempo, alguém que sempre esteve do meu lado quando estava doente, que me aconselhava e que resolvia todos os males que me assolavam. E o sentimento de impotência… Apenas perguntava a mim própria, “Que posso eu fazer mais?”, e as lágrimas começavam a formar-se, os rios a correr pelos jeitos da face, a força a perder-se, a esperança a esgotar-se… Como queria saber salvar-te!

E a menina crescida continuava ali, com o seu vestido vermelho, em frente ao piano que a avó tanto gostava de ouvir, dando-lhe o prazer de sentir a música como se fosse novidade, como se fosse a primeira vez que a ouvia… e para ela, se calhar era…

Continuava mexendo os seus dedos, movimentos frenéticos que faziam baloiçar os seus cabelos, que faziam transparecer a sua paixão pelas pautas musicais…

Mas um dia a avó fugiu, nem a música a fez parar, andou pelo prado deambulando sem parar, foram minutos de busca eterna… Que preocupação que era! E em vez de tocar, começou a vigiar, começou a ficar atenta à janela que dava para a frente da casa, começou a parar e o som mergulhou num profundo silêncio que provocava arrepios na espinha… agora a avó dormia como se não houvesse amanhã, dormia, dormia e voltava a dormir. Por vezes, de repente, acordava agitada, tratava mal tudo e todos, batia, mordia, fugia. As ilusões metiam medo… quantas e quantas vezes entrei nelas para lhe transmitir um pouco de calma? E quantas adormeci ao seu lado, com a minha mão sobre a dela para que ficasse tranquila?

Os problemas de deglutição começaram a surgir e já nem eu a conseguia fazer comer, ela esquecia-se da comida que tinha na boca e nem o meu toque no seu queixo fazia mover a sua boca… a sonda seria a ultima hipótese, mas eu não queria, não queria levá-la para o hospital, não queria fazer com que ela ficasse internada…

Mas nada havia a fazer, o hospital tornou-se a minha casa também, todos os dias, ao lado dela, contando-lhe histórias da sua própria vida agora esquecidos…mas a mim, nunca deixou de me reconhecer, nunca deixou de me tratar pelo meu nome, mesmo quando as suas palavras já eram difíceis de perceber, eu continuava lá, respondia-lhe e passávamos horas à conversa…

Veio um dia e ela não me conheceu, percebi que era o momento da despedida… ela iria morrer! Iria deixar-me para seguir o seu caminho, para fazer uma longa viagem… passei dias a chorar, a acordar todas as noites com pesadelos, a não saber encontrar-me no meio da solidão, do desgosto, da dor de ter de continuar uma vida, agora sozinha… E as saudades que tinha dela, dos dias passados ao seu lado! E a bata branca nunca mais viu a luz do dia, tal como o vestido vermelho que nunca mais sentiu as notas que normalmente o rodeavam, a melodia, o som…e o silêncio penetrante daquela casa fez-me fugir… peguei no telefone, algumas roupas e parti…

domingo, 21 de agosto de 2011

A menina... (1ªparte)

Era noite, mais uma insignificante noite em que nada acontecia. Daquelas noites normais em que esperamos a alvorada para iniciar o dia. Estava só, uma solidão que inquietava o coração, mas nada podia fazer para acalmá-lo…

Comecei a ver os clarões diários, que surgiram um após outro, depois de toda aquela tormenta imensa que me consumiu meses sem fim. Comecei a ver o sol brilhar neste céu azul que agora é o alimento dos meus dias, fazendo com que esteja quente o suficiente para as flores começarem a florir.

Inicia-se a Primavera, o verde torna-se constante, tal como o zumbido das abelhas que vão de flor em flor chupando-lhes o néctar, como o chilrear dos pássaros que voando procuram insectos para crias os seus filhos, como o bicho-da-seda que agora voa e com as suas belas e coloridas asas que insistentemente batem, percorrem os prados verdejantes…é altura de sair da toca e ver os novos dias que se aproximam!
Por mais solidão que corroa, a minha alma já está viva…e que bom que é viver!

Decidi inventar tarefas, percorri o prado que volteava a quinta e fui para a lavoura. Contudo, depressa percebi que me magoava e que deformava as minhas delicadas mãos…como tinha a pele delicada! Não desistindo do contacto com a natureza, resolvi-me pela jardinagem… o jardineiro que trabalhava por ali perto foi o meu mestre, mas rapidamente me disse que aquele não era o meu lugar. Contudo insisti na aprendizagem, tanto que hoje sei todos os nomes das flores que pinto… pintar…que prazer que me dá!

 Captar a essência de uma flor, de um rio, de um arbusto, da minha própria casa, até da montanha que teima em estar no horizonte…vê-los, senti-los, cheirá-los, tão somente através de um quadro. É preciso conhecer de tudo de perto para conseguir fazer algo assim. É no mais profundo do meu ser que habita este conhecimento, e quando desperta a vontade, lá vem o cavalete, a tela e o pincel para a rua, lá vem a menina com a sua bata branca captar tudo com o seu misterioso olhar, vendo pormenores que ninguém mais repara, vendo para além de quem vê…

Pinta com a suavidade e a leveza de uma dançarina de ballet, move-se lentamente elevando o pincel vezes sem conta, misturando cores, inventando, fantasiando, sonhando…Ah, que bom é sonhar!

Mas a menina que pinta, que sonha, agora aprendeu a ver não só a natureza, mas também a música…e depois de algumas aulas numa academia próxima da quinta onde vive, os pais, para a compensarem da sua ausência, ofereceram-lhe aquele majestoso instrumento branco…Como fica magnífico naquela sala!

 E ela sentada de frente a ele, inicia o seu treino diário, tocando com os seus finos dedos nas teclas que o compõem. A destreza não é muita, a rapidez é ainda pior, mas o som… esse é infinito! Tocando o coração de qualquer pessoa que ouça…quando ela se senta ao piano parece que o mundo pára, nada mais soa para além das notas que toca, parece que o relógio suspende o seu tic-tac para escutar a menina de olhos azuis, azuis como o céu que tantas vezes pintou…